Nos termos do artigo 23 do Código Penal, não há crime, por haver exclusão da ilicitude, quando o sujeito pratica a conduta em estado de necessidade. De acordo com o artigo 24 do Código Penal, “considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
O estado de necessidade pressupõe uma situação de perigo gerada por fato humano, animal ou natural da qual surge o conflito entre dois direitos (bens juridicamente protegidos), em que há o sacrifício de um em benefício de outro, sendo essencial que o sacrifício de um bem jurídico seja inevitável para a preservação do outro.[1]
De acordo com Fragoso[2], “saber se era, ou não, razoável exigir-se o sacrifício do bem ameaçado é questão que se refere à proporcionalidade entre tal bem e a gravidade da lesão causada”, sendo indiferente, nesse caso, a valoração pessoal dada, por seu titular, ao bem sacrificado.
A lei prescreve que o perigo deve ser atual, entretanto, Dotti[3] assevera que a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido o estado de necessidade também quando há perigo iminente, ou seja, prestes a acontecer, privilegiando uma interpretação analógica com o instituto da legítima defesa ou com a lei civil que, quando trata do estado de necessidade, refere-se a um perigo iminente.
Não pode alegar estado de necessidade quem, dolosamente, deu causa à situação de perigo, bem como não pode alegá-lo quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo, como, por exemplo, o bombeiro salva-vidas diante de um afogamento.
De acordo com Maurach, citado por Prado[4], há duas possibilidades de estado de necessidade: o que envolve bens jurídicos de mesmo valor (por exemplo: vida x vida) e o que envolve bens jurídicos de valor desigual (por exemplo: vida x patrimônio). No que diz respeito aos bens envolvidos, o estado de necessidade é explicado por suas teorias: a unitária e a diferenciadora.
Segundo a teoria diferenciadora, quando os bens jurídicos são de igual valor, na verdade, há exclusão da culpabilidade e não da ilicitude, porque se configura situação em que há inexigibilidade de conduta diversa. Caso os bens jurídicos sejam de valor diverso, mas haja a opção pela preservação daquele de menor valor, conforme o caso, poderá haver exclusão da culpabilidade, pela inexigibilidade de conduta diversa, ou a sua diminuição, tendo em vista a razoabilidade da conduta praticada, embora exigível conduta diversa.[5]
Conforme lembra Dotti[6], o CP de 1969, que não chegou a entrar em vigor, adotava a teoria diferenciadora, dando tratamento distinto ao estado de necessidade quando se tratasse de bens jurídicos de igual valor e quando, no estado de necessidade, optava-se pela preservação daquele de valor inferior. O Código de 1969 prescrevia que em tais situações não havia exclusão da ilicitude da conduta, mas sim da culpabilidade do agente.
O Código Penal vigente, entretanto, adota a teoria unitária, que determina, impropriamente, que no estado de necessidade há sempre exclusão da ilicitude. Assim, é excluída a ilicitude da conduta quando os bens são de valor distinto e o sujeito opta pelo de maior valor, e também quando os bens são de igual valor e o sujeito opta por qualquer deles. Stefani e Levasseur[7] justificam a exclusão da ilicitude nessa hipótese, sob o argumento de que “no conflito de interesses de igual valor, o delito necessário é socialmente indiferente, porque a sociedade não tem interesse algum em preferir a vida de um em detrimento da de outro”.
A despeito da adoção da teoria unitária pelo Código Penal, segundo Heloisa Gaspar Martins Tavares[8], a teoria unitária não consegue fundamentar adequadamente a impunibilidade do fato necessário, quando os bens jurídicos são de igual valor ou quando o bem sacrificado tem maior valor do que o protegido, situações que só se justificam pela modificação operada sobre a culpabilidade, daí a necessidade do tratamento bifronte dado ao estado de necessidade pela teoria diferenciadora.
A teoria diferenciadora, embora não adotada pelo Código Penal, fundamenta a redução de pena prevista no seu artigo 24, § 2º, a qual diz respeito ao estado de necessidade que envolve bens jurídicos desiguais, em situações em que houve a opção pela preservação do bem de menor valor, quando era exigível conduta diversa.
Assim, a redução de pena prevista no artigo 24, § 2º, do Código Penal tem lugar quando, presentes os requisitos para a configuração do estado de necessidade, pelas circunstâncias do caso concreto, embora fosse plausível que o bem de maior valor fosse sacrificado em detrimento do de menor valor, era exigível conduta diversa (opção pelo de maior valor), o que denota hipótese de redução da culpabilidade e não de exclusão. Ou seja, a minorante em análise pressupõe a exigibilidade de conduta diversa, mas em grau reduzido, em razão da plausibilidade da opção.
A plausibilidade da opção pelo bem de menor valor pode ser analisada à luz do artigo 25 do Código Penal de 1969, que, de acordo com Dotti[9], prescrevia a exclusão da culpabilidade nos casos em que a pessoa protegesse direito de menor valor, mas que fosse de titularidade própria ou de pessoa com quem tivesse estreita ligação, derivada da afeição ou do parentesco, em razão da inexigibilidade de conduta diversa.
O dispositivo em questão apresentava a seguinte redação:
Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou de pessoa a quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual, que não provocou nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao direito protegido, desde que não lhe era razoavelmente exigível conduta diversa.
Depreende-se da leitura desse dispositivo que a relação do agente com o bem jurídico assegurado pode servir de critério para aferição do grau de exigibilidade de conduta diversa, de modo que se o magistrado entender que, no caso concreto, embora exigível conduta diversa, foi plausível o sacrifício do bem de maior valor, poderá reduzir a pena de um a dois terços, com fundamento na causa de diminuição prevista no artigo 24, § 2º, do Código Penal.
Note-se que, além do grau de exigibilidade de conduta diversa e do valor atribuído ao bem por aquele que o defendeu, a redução de pena deve levar em conta o valor jurídico atribuído aos bens em conflito.
Um meio possível de aferição do valor jurídico dos bens em disputa é tomar como parâmetro a pena abstrata a ser aplicada em razão da sua lesão. Os bens para cujas lesões se prescrevem penas mais graves são aqueles a que se atribui maior valor jurídico. Essa análise tem relevo, porque a desproporção de valor entre o bem jurídico sacrificado e o bem jurídico protegido também deve ser critério de gradação do quantum de redução que deverá operar sobre a pena.[10]
Referências
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 2004.
DOTTI. René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro : Forense, 2002.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro : volume 1: parte geral : arts. 1º a 120. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002.
TAVARES, Heloisa Gaspar Martins. Estado de necessidade como excludente de culpabilidade. In: Jus Navigandi. Teresina, ano 9, n. 508, 27 nov. 2004. Disponível em: . Acesso em: 30/06/2007.
GALVÃO, Fernando A. N. Aplicação da Pena. Belo Horizonte : Del Rey , 1995.
[1] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 2004, p. 233.
[2] FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 233.
[3] DOTTI. René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro : Forense, 2002, p. 330.
[4] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro : volume 1: parte geral : arts. 1º a 120. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002, p. 318.
[5] Ver: DOTTI. Curso de Direito Penal... , p. 392; PRADO. Curso de Direito Penal brasileiro..., p. 319; ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002, p. 592-594.
[6] DOTTI. Curso de Direito Penal... , p. 392.
[7] Apud PRADO. Curso de Direito Penal brasileiro..., p. 319.
[8] TAVARES, Heloisa Gaspar Martins. Estado de necessidade como excludente de culpabilidade. In: Jus Navigandi. Teresina, ano 9, n. 508, 27 nov. 2004. Disponível em: . Acesso em: 30/06/2007.
[9] DOTTI. Curso de Direito Penal... , p. 392.
[10] GALVÃO, Fernando A. N. Aplicação da Pena. Belo Horizonte : Del Rey , 1995, p. 259.
Graduada em Direito (UP). Graduada em Comunicação Social - Jornalismo (PUCPR). Especialista em Língua Portuguesa (PUCPR). Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia (ICPC). Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA). Advogada do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Positivo<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARREIROS, Yvana Savedra de Andrade. A diminuição da pena no estado de necessidade incompleto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jan 2009, 09:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /16399/a-diminuicao-da-pena-no-estado-de-necessidade-incompleto. Acesso em: 29 dez 2024.
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